sábado, 26 de setembro de 2009

O Chutão de Giovanni (Santos FC)



Giovanni foi acusado de incitar a revolta da torcida santista que invadiu o campo da Vila na noite de quinta passada. O gesto com o qual Giovanni teria comandado as arquibancadas foi um chutão que isolou a bola. O que poderia ser lido como "para mim, chega!", foi lido como "ao ataque!". A moça do Globo Esporte disse que os jogadores precisam se conscientizar de sua condição de figura pública. Um dirigente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) ameaça suspender Giovanni. O chutão é uns dos gestos mais grotescos do futebol.

Nós, brasileiros, temos usufruído, como nenhum outro povo do planeta, incontáveis momentos sublimes em que uma atividade prosaica atinge o estado da arte. Claro, falo do futebol que me fez um dia chamar minha banda de Football Music, num elogio imodesto à minha própria musica: chamá-la de futebol para indicar que ela seria arte pura (e, ao mesmo tempo, pura brincadeira, puro jogo). Como o nosso futebol.

Momentos de futebol-arte, como os que temos gozado durante nossa existência, nascem quando um jogador realiza o gesto perfeito. A noção de gesto, usada por Mário de Andrade para pensar a arte, encontra a melhor expressão na pintura: o gesto que o pincel realiza no ar, e fica gravado na tela, testemunha o momento em que um mortal, aquele pintor, aquela criança que se recusou a crescer e optou por passar a vida numa brincadeira com tintas, cores e formas, transcende o comum e toca a emoção dos homens adultos. O gesto então se imortaliza, imortaliza o pintor e, com ele, toda a espécie humana que testemunha e celebra a vitória sobre a realidade e o fim.
Um gesto imortal pode ser desenhado no ar em forma de som, não apenas de imagem. O gesto mais memorável da música é o tema da quinta sinfonia de Beethoven. Parece que Beethoven ficou tão impressionado com o gesto que propagou, que não parou mais de repeti-lo por toda a obra: inscreveu-o inúmeras vezes no papel. Outros mortais, depois, gravaram-no vezes incontáveis em discos e o elegeram o tema da vitória contra a banalidade do mal.
A jogada de Pelé no gol dos chapéus, na Rua Javarí, sem testemunha de cinema ou TV, ficou tão indelevelmente gravada na memória dos que a assistiram, que se fez obrigatória sua gravação virtual e real por computador, na película de "Pelé Eterno".

Gestos eternos no Brasil de todo o Santos, o time que por desejo de algum santo foi destinado a realizar os gestos mais sublimes do futebol. O time que foi vestido de branco, a cor pura, por algum outro santo, para que seus gestos imortais não rivalizassem com outras cores, mas se destacassem melhor na tela estendida no próprio corpo do artista.

Parecia que, com o fim de Pelé, o Santos já tinha realizado seu destino imortal. Mas eis que surge Robinho, o afortunado. Não há glória maior no futebol mundial do que ser artista imortal no time em que Pelé vestiu-se de branco. Depois do rei, Robinho foi quem melhor realizou o desígnio: seus gestos levaram o time a dois campeonatos brasileiros e a dois vices importantes depois de 20 anos de infelicidade. Então, o Santos despediu-se também de Robinho.

Eis que retorna Giovanni, o desafortunado. Gestos de Giovanni estariam gravados na história tanto quanto os de Robinho e Pelé, não fossem os sons desafinados apitados por aquele pobre diabo, na final de 1995. Por sorte, gravei em fita um jogo daquele campeonato, o jogo em que o Santos goleou o Fluminense e qualificou-se para a final infeliz. Mas não preciso da fita para uma lembrança, a do técnico do Fluminense explicando a derrota: "esse cara joga muito!". A expressão no rosto de Joel Santana não era de derrota: era de maravilha, de alguém tocado pela arte, alguém que viu um gênio gestualizar.

Depois dos 4 a 2 contra o Corinthians, agora em 2005, o jogo que seria anulado, Robinho declarou: "Giovanni é gênio". Esperava-se de Robinho, que nunca perdeu para o Corinthians e que voltava depois de tumultuada ausência, os melhores gestos do jogo. Seu melhor gesto foi a declaração. Lembro-me de momentos sublimes de Giovanni no jogo: o sem pulo de fora que resultou em gol, de lances com Robinho, de seus toques desconcertantes, pinceladas de uma obra genial, passes de mágica, espirituais. Mas a obra imortal, o 4 a 2, sofreu uma tentativa de vandalismo: foi anulado por um outro tipo de juiz desafinado, o infeliz presidente STJD, mais um representante da vida seca, alguém incapaz da sensibilidade de julgar caso a caso os jogos apitados pelo árbitro caído, o tal Edílson, apesar de este ter deixado involuntariamente gravado num telefonema que o Santos estivera abençoado. Que nem mesmo o seu demônio pessoal pudera prejudicar o time de branco.

Quando anularam esse jogo, falei com um porteiro aqui do prédio, com quem converso sobre arte: como é possível anular o que Giovanni fez naquele jogo? Como deletar da memória gestos eternos?

Quando Giovanni voltou em 2005, dez anos depois de ter sua história roubada, disse algo como "voltei para ser o campeão que não fui em 1995". Um índio amazônico descera de uma Europa brilhante, em busca do tempo perdido na Santos de todos os sonhos.

Mas pobres almas infantilizadas em onipotência e incompetência, como o juiz corrompido e o dirigente purificador, que vê contaminação onde há apenas arte e inocência, ou diabretes pífios, como o juiz de 1995, gente que desaparecerá sem deixar transcendência, esses condenados parecem escolhidos para realizar o desejo de um demônio maior: o de que Giovanni seja infeliz aos olhos da torcida que o ama.

Entretanto, mais fortes são os poderes do santo: há outro tipo de gesto, um de tipo não artístico, que logra marcar-se para sempre nas memórias e nas gravações, e que encontra uma vereda contra a conspiração da infelicidade. O gesto feito de drama, de revolta ante os erros de outros homens, ante o que é meramente real, o destino e o azar, a perseguição movida pela banalidade. Um gesto como o do chinês desarmado diante do tanque de guerra.

E o Giovanni dos gestos que teimam em apagar-se encontrou seu gesto imortal num chutão, não no passe giovannesco para o primeiro gol. Chutou para cima, para isolar, as sentenças medíocres que insistem em proibir-lhe a imortalidade. O contido Giovanni explodiu de revolta e sua humanidade o transcendeu. Liberou, não liderou, a raiva contida em uma torcida ultrajada pela tentativa de roubarem o seu 4 a 2 imortal, aquele em que ele e Robinho jogaram juntos e venceram. Giovanni não merece nenhum castigo. Mais nenhum.

Merece ser gravado na única placa que um chutão poderia produzir.
Texto maravilhoso assinado por Hermelino Neder em 2005, sobre a vergonha daquele nacional. Pode ser lido inteiramente aqui.

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